O fortalecimento do e-commerce durante a pandemia não enfraqueceu o varejo físico. Longe disso: segundo levantamento da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm), quase 90% do varejo ainda é físico. Mas, graças à tecnologia, a maneira de olhar para essas lojas mudou – ou deveria ter mudado.
Sim, as empresas com lojas físicas sofreram golpes duros durante a pandemia. Também é verdade que aqueles que já praticavam o modelo omnichannel tiveram menos perdas e conseguiram se adequar às restrições com maior êxito.
Todas essas dificuldades só evidenciam a força do modelo de venda presencial. E o movimento atual é o de marcas que nasceram digitais ganharem suas lojas físicas.
Isso não está acontecendo somente porque havia uma demanda reprimida pelas restrições sanitárias, tampouco é uma aposta comercial pouco embasada. Ao contrário: é consequência de uma inteligência de negócios que só foi possibilitada pelo aumento expressivo do volume de dados gerados pelos canais digitais.
Assim como o meio físico percebeu as vantagens e benefícios de migrar para o online, o oposto começa a acontecer. Com as vendas online, as grandes (e até médias) empresas conseguiram obter informações mais precisas sobre mercados regionais e seus comportamentos. Com isso, tem sido possível traçar uma estratégia apropriada para determinada região Em termos práticos: imagine um grande varejista, com uma boa infraestrutura para seus canais online. A empresa consegue identificar regiões onde o consumidor em potencial coloca vários itens no carrinho, mas não finaliza a compra, seja porque o frete o desestimula, seja por não ter o hábito da compra online.
Podemos ainda pensar na questão da disponibilidade. As ferramentas tecnológicas permitem ter o produto na quantidade adequada, já que tanto o excesso como a falta de uma mercadoria provocam sentimentos diferentes no consumidor, que interferem na decisão de compra. Esses são apenas dois exemplos possíveis. O fato é que essa inteligência de dados e as características peculiares do atendimento presencial geram mais oportunidades de fazer a migração do digital para o físico ser bem-sucedida do que o contrário.
Engajamento não é exclusividade de redes sociais
Opor a experiência física e a digital em épocas de omnicanalidade e comércio phygital é contraproducente. O que acontece é uma adaptação, que tem a ver não só com os acontecimentos recentes, mas também – e principalmente – com a mudança de comportamento das novas gerações. Há um grupo muito significativo de consumidores que já nasceu conhecendo as opções trazidas pela omnicanalidade e nunca experimentou resistência ou insegurança em relação aos canais de comércio digital. E mesmo esse público não despreza o atendimento em loja.
O que difere os canais é uma questão do plano de merchandising. Os clientes que compram nas virtuais têm questões de urgência: vivem com uma disponibilidade reduzida de tempo e tendem a comprar poucos itens, mesmo em empreendimentos com um bom tíquete médio. É uma experiência com pouco espaço para compra por impulso, pois mesmo as soluções de inteligência artificial não conseguem (ainda) ter a mesma eficácia de um vendedor engajado e comprometido com a marca. Vendas assistidas têm altíssimo potencial de gerar compras adicionais.
A loja física traz, ainda, o papel da experimentação que a virtual não permite. A experiência sensorial do comprador é algo de extrema importância. O exemplo mais óbvio seria no varejo alimentício: um consumidor que entra na padaria com a intenção de comprar apenas um maço de cigarros pode sair de lá com vários pães para o lanche da tarde, se o aroma e o ambiente forem convincentes. Mas isso é possível em muitos outros segmentos. A percepção é uma parte da materialização do desejo, e o consumidor compra motivado pelos sentidos. Isso é algo que o digital não consegue entregar.
Um novo posicionamento
Mesmo com todo esse potencial, é preciso ter uma estratégia forte. Por muitos anos, os grandes varejistas ficaram presos a uma visão estreita, que valorizava excessivamente os bônus que recebiam de shopping center para abrir novas unidades, mesmo em lugares onde a operação tinha pouco potencial de sucesso. Havia até uma expressão corrente para essa situação: “dor de crescimento”. Com tantas ferramentas capazes de levantar dados para fundamentar um planejamento sólido e factível, não faz sentido insistir nessa prática.
Outro ponto importante a considerar é o comportamento dos showroomers, ou seja, os clientes que experimentam o produto na loja física e efetuam a compra no online. Eles querem conhecer a sensação do produto antes de adquiri-lo, fazem pesquisas comparativas, e quando se decidem, rumam para a loja virtual. É preciso aproveitar esse momento de experimentação para engajar o cliente com a marca e efetuar a compra. Adotar uma prateleira infinita (conceito que possibilita conectividade com outros estoques que não o daquela unidade específica) é uma das maneiras de explorar essas oportunidades.
Há, ainda, as soluções de IA e machine learning específicas para lojas físicas, que permitem estudar o comportamento do cliente in loco – como, por exemplo, o tempo de permanência em determinada seção, o tempo médio de visita na loja e coleta de outros dados via IoT. São recursos já bastante utilizados por home centers e lojas de vestuário e calçados, principalmente, e que rendem bons resultados.
É difícil prever rumos específicos para o varejo, já que diversas variáveis macroeconômicas têm se apresentado: a ameaça da Covid-19 não se dissipou totalmente, a cadeia de suprimentos de alguns setores está deficiente, há inflação de dois dígitos, entre outras questões. Mas os empresários do setor varejista estão investindo bastante, especialmente em recursos que aumentem sua capacidade de entender seu cliente e sua jornada. A busca é sempre por uma plataforma mais digital (mesmo na loja física), com menos atritos para a venda e maior agilidade para clientes e vendedores.
*Enéas Rodrigues é sócio da Lozinsky Consultoria de Negócios.